Trabalhando o faz-de-conta

Atualmente passamos por uma crise muito séria na educação, professores descontentes, pais preocupados, alunos desmotivados. É necessário olhar tanto para o extra como para o intra-escolar.
Entende-se que para uma possível melhora deste contexto, deve haver modificações nas políticas públicas para a Educação, maior valorização do educador e, entre outros aspectos, além da necessidade da formação continuada dos educadores, o desenvolvimento de um outro olhar para a ludicidade. Esta vista como forma não mágica, mas como recurso mais atraente, estimulador para a construção do conhecimento.
Os jogos não são fórmulas mágicas, que solucionam todos os problemas da criança, porém ajudam no seu desenvolvimento como ser total, facilitando a descoberta do sujeito dentro de suas singularidades.
As crianças perpetuam e renovam as culturas infantis, desenvolvendo formas de convivência social, modificando-se e recebendo novos conteúdos, a fim de renovar a cada nova geração. É pelo brincar e repetir a brincadeira que a criança saboreia a vitória da aquisição de um novo saber fazer, incorporando-o a cada novo brincar.
As teorias sócio-construtivistas concebem o desenvolvimento infantil como um processo dinâmico, onde as crianças não são passivas, nem meras receptoras das informações que estão a sua volta. “Na brincadeira infantil a criança assume e exercita os vários papéis com os quais interage no cotidiano. Ela brinca, depois, de ser o pai, o cachorro, o motorista, jogando estes papeis em situações variadas” (OLIVEIRA, 1992:57). A brincadeira possibilita a investigação e a aprendizagem sobre as pessoas e as coisas do mundo. Através do contato com seu próprio corpo, com as coisas do seu ambiente, com a interação com outras crianças e adultos, as crianças vão desenvolvendo a capacidade afetiva, a sensibilidade e a auto-estima, o raciocínio, o pensamento e a linguagem.
Vygotsky (1998) focaliza o contexto social em que a criança está inserida, valorizando-o, pois através da interação e comunicação dentro de uma situação imaginária, ela incorpora elementos de seu contexto cultural. Sendo assim,
“as interações da criança com pessoas de seu ambiente desenvolvem-lhe, pois, a fala interior, o pensamento reflexivo e o comportamento voluntário. [...] A brincadeira fornece, pois ampla estrutura básica para mudanças da necessidade e da consciência, criando um novo tipo de atitude em relação ao real, nela aparece a ação na esfera imaginativa numa situação de faz-de-conta” (OLIVEIRA:1994:44-45).
O faz-de-conta é uma atividade de grande complexidade, uma atividade lúdica que desencadeia o uso da imaginação criadora. Pelo faz-de-conta a criança pode reviver situações que lhe causam excitação, alegria, medo, tristeza, raiva e ansiedade. Ela pode, neste brinquedo mágico, expressar e trabalhar as fortes emoções muitas vezes difíceis de suportar. E a partir de suas ações nas brincadeiras, explora as diferentes representações que tem destas situações difíceis, podendo melhor compreendê-las ou reorganizá-las.
Outra situação que mostra essa função de registro e de trabalho cognitivo-emocional da brincadeira pode ser exemplificada pelo caso de uma criança que foi recentemente operada de garganta, passado por varias experiências desagradáveis de tomar uma injeção de anestesia, acordar com a garganta muito doída e com dificuldades para engolir até líquidos. Na creche em um momento posterior, ela pôde ser observada recriando na brincadeira a situação vivenciada no hospital, “dando injeção” e “operando” a boneca ou algum companheiro. Assim, ela revive no faz-de-conta a situação traumática, podendo explorá-la com um certo distanciamento que lhe permite trabalhar as emoções difíceis que sentiu naquele momento (OLIVEIRA, 1992:58).
De acordo com Vygotsky (1998), o faz-de-conta é uma atividade importante para o desenvolvimento cognitivo da criança, pois exercita no plano da imaginação, a capacidade de planejar, imaginar situações lúdicas, os seus conteúdos e as regras inerentes a cada situação. Para este autor, “a situação imaginária de qualquer forma de brinquedo já contém regras de comportamento, embora possa não ser um jogo com regras formais estabelecidas a priori. A criança imagina-se como mãe da boneca e a boneca como criança e, dessa forma, deve obedecer às regras do comportamento maternal” (VYGOTSKY, 1998:124).
Kishimoto (2003) destaca a situação imaginária e as regras, como elementos importantes na brincadeira infantil, onde, nas situações imaginárias claras ou não, há regras implícitas e explícitas. Como exemplo, a criança ao imitar um motorista, segue suas regras implícitas, diferente do futebol, onde as regras são explícitas, variando conforme estratégias adotadas pelos jogadores.
Através da brincadeira, a criança desenvolve a atenção, a memória, a autonomia, a capacidade de resolver problemas, se socializa, desperta a curiosidade e a imaginação, de maneira prazerosa e como participante ativo do seu processo de aprendizagem.
Para Kishimoto, “ao prover uma situação imaginativa por meio da atividade livre, a criança desenvolve a iniciativa, expressa seus desejos e internaliza as regras sociais” (KISHIMOTO, 2003:43).
Felizmente o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil traz, em seus objetivos maiores, o brincar. E isso vale para crianças de 0 a 3 e de 4 e 5 anos. Entre o conhecimento e exploração do corpo, os cuidados, a segurança e a autonomia, está a “participação em brincadeiras de esconder e achar e em brincadeiras de imitação; a escolha de brinquedos, objetos e espaços para brincar”, de 0 a 3 anos. E de 4 e 5 anos, constam objetivos como a “participação em situações de brincadeiras nas quais as crianças escolham os parceiros, os objetos, os temas, o espaço e os personagens; a participação de meninos e meninas igualmente em brincadeiras de futebol, casinha, pular corda, etc. Esses objetivos deveriam ser ampliados para o ensino fundamental, já que a criança continua criança, e que os tipos de brinquedos e brincadeiras apenas são transformados, ficando mais complexos, mais elaborados. O ensino fundamental perde em qualidade com a ausência do brincar nas salas de aula.
Frente às concepções apontadas, a escola de educação infantil deve atender às necessidades da criança em suas diferentes fases do desenvolvimento, com propostas pedagógicas adequadas, que contenham atividades que despertem sua imaginação, contribuindo para o processo de construção da sua autonomia e conhecimento.
Autoras: Ana Lucia de Abreu Braga e Nanci Cássia do Amaral Araújo

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